O
registro bíblico de Gênesis 7 e 8 descreve não uma inundação local,
circunscrita ao vale da Mesopotâmia (como alguns estudiosos têm sugerido), mas
o nível das águas cobriu os picos das montanhas mais altas. Gênesis 7.19
declara: "As águas dominavam cada vez mais a terra, e foram cobertas todas
as altas montanhas debaixo do céu" [literalmente, "que estavam
debaixo de todo o céu"; grifo do autor). A seguir, o versículo 20 informa
que o nível da água ergueu-se quinze côvados acima dos montes (quinze côvados
equivalem a dez metros).
O mais elementar conhecimento das leis da física
leva-nos à observação de que a água procura seu nível exato. Uma enorme onda
pode temporariamente atingir uma grande altitude, acima do nível normal do mar,
mas o episódio aqui descrito durou cerca de um ano, pelo que não se trata de
uma torrente súbita, temporária. Se o nível da água subiu dez mil metros,
cobrindo o pico do monte Evereste, o mais alto do mundo, deve ter atingido esse
patamar em toda a terra. Até o monte Ararate, onde a arca de Noé pousou, a água
elevou-se a mais de seis mil metros. A água que subisse a tão elevados níveis
certamente cobriria toda a superfície da terra, exceto os mais elevados picos dos
Andes e do Himalaia, mais algumas cordilheiras da América e da África.
Portanto, ou concluímos que o Dilúvio foi universal ou o registro bíblico está
lamentavelmente errado. É verdade, sem a menor dúvida, que a elevação das
montanhas ainda está em processo na América do Norte, mas nem mesmo a redução
de alguns milhares de metros na altitude de cordilheiras tão elevadas como os
Andes e o Himalaia mudaria substancialmente a distribuição das águas do Dilúvio
no âmbito mundial. A questão das evidências geológicas é muito debatida entre
os cientistas, de acordo com a posição que assumem quanto à validade do
registro bíblico. Certos geólogos cristãos acham que alguns dos maiores
distúrbios sismológicos indicados em várias partes do globo, nos níveis cenozóicos,
explicam-se melhor como tendo origem no Dilúvio (cf. Gn 7.11: "No dia em
que Noé completou seiscentos anos, um mês e dezessete dias, nesse mesmo dia
todas as fontes das grandes profundezas jorraram, e as comportas do céu se
abriram". Algumas camadas contêm grandes blocos de argila saibrosa, no
meio de areia grossa, o que se pode plausivelmente atribuir a violentos
movimentos ondulares de água em agitação, algo que nunca se viu em nossa época.
Mas é possível que as evidências mais impressionantes da violência do Dilúvio
por toda a terra encontrem-se na espantosa profusão de animais da era
quaternária, ou recente, cujos ossos teriam sido violentamente estraçalhados, e
foram descobertos em depósitos escavados em várias localidades da Europa e da
América do Norte. Rehwinkel (The flood) indica que esses depósitos estão
presentes até mesmo em montanhas de grande altitude e estendem-se a uma
profundidade que vai de 45 a cem metros. Visto que nenhum esqueleto se acha
completo, pode-se dizer com certa segurança que nenhum desses animais (mamutes,
ursos, lobos, bois, hienas, rinocerontes, bisões, veados e muitos mamíferos de
menor porte) caiu vivo nessas fendas e tampouco foram empurrados ali pelas
torrentes. No entanto, devido à cimentação de cálcio verificada nesse conjunto
de ossos heterogêneos, necessariamente foram todos depositados ali sob água.
Tais fendas foram descobertas em Odessa, perto do mar Negro, na ilha de
Quitera, ao largo do Peloponeso, na ilha de Malta, na rocha de Gibraltar e até
nas fontes de Ágata, no Nebraska (que foram escavadas em 1876, numa área de dez
acres). Essas evidências geológicas têm importância decisiva, embora raramente
sejam mencionadas pelos cientistas que rejeitam a exatidão das Escrituras. Tudo
isso é exatamente o tipo de prova que um episódio curto, mas violento — como um dilúvio universal — deixaria,
após uma ação de mais ou menos um ano. É claro que haveria pequena precipitação
sedimentaria num período de tempo tão curto. É certo que existem algumas
evidências negativas, como por exemplo os cones de escória solta e cinza de
vulcões da região de Auvergne, França, que se alega ter milhares de anos mais
que a idade estimada do Dilúvio. Mas, enquanto não ficar decisivamente
comprovado que esses vulcões são anteriores ao Dilúvio (a data real do Dilúvio
ainda não foi determinada) e não for demonstrado que, mediante a submersão
durante um ano em águas salobras, tais
formações vulcânicas haveriam de apresentar mudanças notáveis na aparência, as
quais seriam perceptíveis ao investigador moderno, parece-nos prematuro afirmar
que esse tipo de evidência é mais convincente que os depósitos de esqueletos
mencionados acima, os quais testificam definitivamente a universalidade do
Dilúvio descrito em Gênesis 7. Há um elemento notável no registro bíblico que o
coloca em lugar de destaque, separado de todas as demais narrativas do Dilúvio
existentes em outros povos. Relatos desse acontecimento têm sido preservados
entre as mais diferentes tribos e nações por todo o mundo: os babilônios (que chamavam
de Utnapishtim ao seu Noé); os sumérios, que tiveram o seu Ziusidru; os gregos
com seu Deucalion; os hindus com seu Manu; os chineses com seu Fah-he; os
havaianos com seu Nu-u; os índios mexicanos com seu Tezpi; os algonquinos com
seu Manabozho. Todos esses relatos dizem que o sobrevivente solitário (talvez
com sua esposa, filhos e noras) salvou-se da destruição provocada por um
dilúvio universal e depois enfrentou a tarefa de povoar de novo a terra
devastada, tão logo as águas desapareceram da superfície do solo. Entretanto,
de todos os registros, só o de Gênesis indica com a exatidão de um diário de
bordo a data do início do Dilúvio (quando Noé estava com exatamente 600 anos de
idade, no dia dezessete do sétimo mês desse ano), a duração das chuvas (40
dias), o tempo durante o qual a água permaneceu no máximo de volume (150 dias),
a data em que os topos das montanhas tornaram-se visíveis de novo (no primeiro
dia do décimo mês), a extensão de tempo decorrido até que a primeira evidência
de novas plantas foi levada a Noé no bico de uma pomba (47 dias, de acordo com
Gênesis 8.69) e o dia exato em que ele saiu da arca pousada no monte Ararate
(estava ele completando 601 anos de existência; era o primeiro dia do primeiro
mês). Temos aqui um registro pessoal que aparentemente tem a idade do próprio
Noé. O registro babilônico contém minúcias vividas de como Utnapishtim
construiu sua arca, sem haver menção de datas específicas. À semelhança da
maioria das lendas passadas verbalmente ao longo dos séculos ou dos milênios, o
poema épico de Gilgamés (Tabuinha 11) nada menciona a respeito do ano, ainda
que o deus-sol, tão amigo, Shamas, houvesse advertido sobre o exato dia em que
os sobreviventes deveriam entrar na arca. Parece-nos que esse relato babilônico
fica bem mais próximo do registro de Gênesis que as demais histórias do
Dilúvio. Assim foi que um deus amigo adverte o herói antecipadamente e
ordena-lhe que construa uma arca, de modo que possa salvar não só a própria
família, mas também uma seleção de animais representativos. A arca finalmente
aterrissou num monte chamado Nisir, na cordilheira de Zagros, a nordeste da
Babilônia, e Utnapishtim enviou uma pomba, uma andorinha e um corvo para que
trouxessem notícias das condições lá fora. Finalmente ele saiu com sua família
a fim de oferecer sacrifícios aos deuses famintos, por causa das longas semanas
em que o Dilúvio cobrira a terra. Alguns estudiosos de religiões comparadas têm
sugerido que o mito babilônico antecede o dos hebreus e que os compiladores de
Gênesis 7 e 8 o tomaram emprestado. Entretanto, essa hipótese torna-se
improvável à vista do contraste significativo existente entre ambos. Assim é
que a arca construída por Utnapishtim era cúbica, dotada de seis conveses, onde
os animais seriam confinados. É impossível imaginar-se
uma embarcação menos prática e menos apropriada para navegação no mar. A arca
de Noé, no entanto, tinha 300 côvados de comprimento, 50 de largura e 30 de
altura — medidas ideais para um transatlântico moderno. Se o côvado medisse
cerca de 45 centímetros naquela época (e provavelmente essa seria a medida,
num período em que os homens eram
de estatura maior do que seriam após o Dilúvio — cf. Gênesis 6.4), a arca de
Noé teria tido 135 metros de comprimento, de largura 22, 5 metros, de altura
13, 5 metros). Se tivesse o formato de uma caixa (como provavelmente deveria
ter, em vista dos propósitos especiais a que serviria, teria tido condições
para abrigar dois mil vagões de gado, em cada um dos quais cabem de dezoito a
vinte animais, ou sessenta a oitenta porcos, ou de oitenta a cem ovelhas. Em
nossa época, existem apenas 290 espécies de animais terráqueos maiores que uma
ovelha. Há 757 cujo tamanho varia da ovelha ao rato e 1358 menores que o rato.
Dois representantes de todas essas espécies caberiam confortavelmente em dois
mil vagões de gado, havendo ainda muito espaço para a ração. O mesmo talvez não
se pudesse dizer do navio esquisito de Utnapishtim, sujeito a naufragar em mar
bravio por causa de seu formato cúbico. Além disso, o violento contraste entre
os deuses ciumentos e briguentos do panteão babilônico e a santidade majestosa
de Iavé, o absoluto soberano do Universo, fornece-nos a mais robusta base para
que classifiquemos o relato de Gilgamés como fábula politeísta, derivada do mesmo
episódio contido em Gênesis 7 e 8. O registro hebraico é redigido no estilo de
história sóbria e precisa, que reflete uma fonte derivada de pessoas que
estiveram realmente envolvidas no episódio.
A narrativa épica de Gilgamés é
substancialmente vaga e cheia de mitos. Para os leitores que desejam ler mais a
respeito das versões folclóricas espalhadas pelo mundo inteiro, derivadas da
narrativa do dilúvio em Gênesis, veja James Frazer, Folklore in the Old
Testament, vol. 1 (Londres, Macmillan & Co., 1918), ou a substancial obra
de Richard Andree, Die Flutsagen ethnographisch betrachtet (Brunswick, 1891).
Quanto ao épico do Dilúvio babilônico, veja Alexander Heidel, The Gilgamesh
epic and Old Testament parallels, 2. ed., Chicago: Univ. de Chicago, 1949.
Fonte: Enciclopédia de Temas Bíblicos (Geanson Archer).
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